segunda-feira, 26 de abril de 2010

Fotojornalismo


Adepto ao car free (sem carro) pego ônibus e metrô alternadamente para ir e voltar do trabalho e, nestes itinerários, às vezes desço a Rua da Consolação e em outras a Rua Augusta.
Hoje vim no bumba que desce a Rua Augusta. Antes parei no Conjunto Nacional da Av Paulista para ver a Exposição Retrospectiva 2009 de Fotografias da ARFOC. Alí tem um conjunto de fotografias admiráveis mas quem brilha é o poema do Maurilo Clareto, de uma poética visceral. Lilo é daqueles que canta samba, dá gargalhadas, chora e ama. Valeu Lilo me sinto super identificado com o seu poema.


O repórter fotográfico

Você viu o brilho da dor nos olhos das pessoas.
Você sofreu com elas.
Você pisou nas cinzas, na brasa e respirou a fumaça do incêndio.
Você sentiu o cheiro da morte e quase pisou na poça de sangue.
Você tropeçou no cadáver e quase levou um tiro. Você estava no confronto.
Você ouviu os gritos nas entranhas da rebelião.
Você contou os mortos.
Você levou porrada da polícia e foi ameaçado pelo traficante.
Você esteve no coração do lar daquela família dilacerada pela violência.
Você viu de perto a fome e o desemprego.
Ninguém melhor que você sabe o significado físico da miséria,
da exclusão social, da má distribuição de renda.
Porque você esteve também em banquetes nababescos.
Você desceu as ruas da favela e subiu os elevadores da FIESP.
Você sabe o que é Brasilândia, Jardim Ângela, SESC Itaquera
E sabe o que é Leopoldo, Fasano e Credicard Hall.
Você viu – muito bem – onde foi enfiado o dinheiro dos impostos.
Você provou um pouco da vida de quem tem muito, muito mais do que necessitaria ter.
Você comeu caviar.
Você viu a luz na expressão da artista e desejou a boca, as pernas, os seios da modelo.
Você se excitou. Se duvidar, você a amou.
Você fitou o semblante do homem santo, você orou com a multidão. Você foi quase santo.
Você quase beijou o umbigo da passista e sambou na avenida.
Foi pagão entre pagãos.
Você aprisionou a alma do Ianomâmi e ainda tem a sua alma presa em uma aldeia.
Você viveu a glória das vitórias e o desespero das derrotas.
Você esteve sempre ali, na cara do gol.
Você ensurdeceu com o ronco dos motores e aspirou o cheiro de combustível nos cock pits.
Você chorou com toda aquela gente a morte do campeão.
Você estava lá quando o povo foi para as ruas e derrubou o presidente.
Você se misturou aos cara pintadas.
Na festa democrática das eleições você também estava lá. E se emocionou. Você se angustiou com a dor das diferenças, com a tragédia das fatalidades. Você viveu!
Você viveu muito! Você vive intenso.
Por isso você bebe. Você fuma, ri alto, protesta, provoca, faz festa.
E é tachado de maluco, transviado, inconseqüente, alucinado, irresponsável, inconveniente...
Também assim chamam os poetas.

Por isso, não ligue para os humores daqueles que não te entendem e,
sentados atrás da mesa, na frieza dos monitores e do ar condicionado, arautos do “dead line” aguardam, impacientes, sua foto.
Entenda: eles só podem viver depois do fechamento...

Maurilo Clareto.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Soberania

Retrato do poeta Manoel de Barros em azul acima da máscara

É da natureza dos grafites urbanos serem sobrepostos ou deletados. Na pequena e abandonada praça em frente à Camara Municipal de São Paulo, no início da Rua Santo Antonio, este grafiti já mostrou o poeta Manoel de Barros na parede limpa. Ontem estava assim. A praça fica em frente ao quinto maior orçamento público do Brasil. Pela manhã fede a merda. Mendigos a usam como mictório. As crianças não aparecem porque os brinquedos apodreceram. Quem sabe um dia os vizinhos se mobilizem e reinvidiquem a recuperação da praça e a renomeiem em homenagem a este poeta que considero um dos melhores que já lí.

Soberania

Manoel de Barros

Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que
tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo
do vento escorregava muito e eu não consegui
pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso
carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos
deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado
e disse que eu tivera um vareio da imaginação.
Mas que esses vareios acabariam com os estudos.
E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li
alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio.
E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria
das idéias e da razão pura. Especulei filósofos
e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande
saber. Achei que os eruditos nas suas altas
abstrações se esqueciam das coisas simples da
terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo
— o Alberto Einstein). Que me ensinou esta frase:
A imaginação é mais importante do que o saber.
Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei
um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu
olho começou a ver de novo as pobres coisas do
chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E
meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam
o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no
corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas
podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as
próprias asas. E vi que o homem não tem soberania
nem pra ser um bentevi.

Texto extraído do livro (caixinha) "Memórias Inventadas - A Terceira Infância", Editora Planeta - São Paulo, 2008, tomo X, com iluminuras de Martha Barros.
P.S. Para o Mario Abel, morador do prédio vizinho à praça e que foi meu assistente.